Máfia, uma estranha aliada?

Em 11 de dezembro de 1941, o Congresso dos Estados Unidos da América, por unanimidade nas duas câmaras, aprovava a declaração de guerra contra a Alemanha e investia o governo do Presidente Franklin Delano Roosevelt dos poderes para conduzir as operações militares e a mobilização nacional decorrentes.

      Logo, os norte-americanos começaram a ser alvos das ações dos submarinos alemães, que foram responsáveis pelo afundamento de 1,2 milhão de toneladas de carga marítima, no período de janeiro a abril de 1942.

      Essas ações ocorreram, em grande parte, ao longo da costa leste do país. Submarinos inimigos chegaram a ser avistados ao largo de Long Island, em Nova Iorque.

      Em 9 de fevereiro de 1942, um incêndio inexplicável tomou conta e provocou o afundamento do SS Normandie, que estava sendo convertido para transporte de tropas, no porto de Nova Iorque. Rumores de que havia sido um ato de sabotagem, praticado por agentes alemães, logo emergiram.

      Também ocorriam, no período, greves de estivadores e trabalhadores portuários; desvios de suprimentos de guerra que afluíam pelos portos e que abasteciam o mercado negro; e sabotagens diversas nas instalações e atividades dos portos, tudo a prejudicar o esforço de guerra americano e a indicar a infiltração de espiões germânicos nos sindicatos, que congregavam muitos trabalhadores imigrantes, oriundos de outro país do Eixo, a Itália, portanto fazendo-os eventuais simpatizantes de sua causa.

      Essas atividades inimigas na costa leste, mormente em sua porção nordeste, levou o Escritório de Inteligência Naval a investigá-las e adotar providências para impedi-las.

A US Navy pede ajuda a Luciano

      A Operation Underworld foi desencadeada, com a finalidade de realizar uma aproximação com a Máfia, que controlava as atividades criminosas e os sindicatos que operavam nos portos do leste, em especial o de Nova Iorque, para fazê-la interferir a favor do governo americano. Foi encarregado do caso o Commander Charles Radcliff Haffenden, do Escritório de Inteligência Naval do 3° Distrito Naval, de Nova Iorque.

      Haffenden contatou o mafioso Joseph “Socks” Lanza, ligado a “Lucky” Luciano e sua organização criminosa, conhecida como “Five Families”. Lanza controlava o sindicato dos trabalhadores da indústria da pesca e operava a partir do Fulton Fish Market, junto ao East River

      Lanza rapidamente concluiu que seria vantajoso colaborar com as autoridades. No entanto, ao inteirar-se da situação, percebeu que havia a necessidade de se lidar com outras máfias, além da siciliana, como a irlandesa e a judaica. Recomendou, então, a Haffenden que somente um homem poderia ajudá-lo: o “capo di tutti i capi”, o próprio Charles “Lucky” Luciano.

Lucky Luciano. (Photo courtesy Bureau of Prisons/Getty Images)

Charles “Lucky” Luciano

      Nascido em Lercara Friddi, na região de Palermo, na Sicília, em 24 de novembro de 1897, Salvatore Luccania imigrou com seus pais para os EUA, quando contava oito anos de idade. A família instalou-se no Lower East Side, em Manhattan, uma vizinhança de imigrantes italianos. Logo ao início da adolescência, com seu nome já adaptado para Luciano, começou a envolver-se com apostas ilegais, venda de proteção e gangues de rua. A origem de seu apelido “Lucky” (sortudo), tem várias explicações, dentre as quais por ter demasiada sorte no jogo, por ter sobrevivido a uma violenta surra e a um ferimento a faca na garganta, ou a uma simples adaptação da pronúncia, em inglês, de seu sobrenome, Luccania.

      Nos anos 1920, as atividades das máfias tiveram um incremento significativo, devido à proibição da fabricação, comercialização e transporte de bebidas alcoólicas, pela 18ª emenda, a chamada Lei Seca. As máfias passaram a controlar o mercado negro resultante, obtendo ganhos significativos.

      Em 1933, com a revogação a proibição, as máfias passaram a investir maciçamente no tráfico de cocaína, morfina e heroína.

      Durante a década de 1020 e a primeira metade da seguinte, Luciano alcançou proeminência e liderança no mundo do crime. Pode ser considerado o “pai” do moderno crime organizado na América, por ter promovido a união de várias organizações criminosas, como as máfias siciliana e judaica, tendo desenvolvido o “National Crime Sindicate” e, posteriormente, ter estabelecido um corpo diretivo para a Máfia, a chamada “The Commission”. Tal ascensão deveu-se a alianças entre as famílias, mas também por meio de assassinatos de desafetos e outras lideranças.

      Em junho de 1936, devido à obstinada atuação de Thomas E. Dewey, um advogado designado promotor especial para combater o crime organizado, Luciano foi condenado a cumprir uma sentença de 30 a 50 anos de prisão por favorecimento à prostituição, prostituição forçada e trabalho escravo. Recolhido à prisão estadual Clinton, em Dannemora, no estado de Nova Iorque, Luciano continuou a comandar a Máfia, por intermédio de Vito Genovese e outros prepostos, após a fuga do primeiro para a Itália, em 1937, para evitar um julgamento por homicídio. Luciano fez seguidos apelos para a revisão de sua condenação até que a Suprema Corte recusou a fazê-lo, em 1938.

      Eis que, em maio de 1942, uma estranha comitiva de mafiosos, advogados e oficiais da Inteligência Naval, liderados por Haffenden, adentra a “Little Siberia”, a ala do presídio de Clinton onde se encontrava a cela de Lucky Luciano. Haffenden propõe a Luciano sua colaboração para o esforço de guerra, fazendo cessarem os problemas nos portos da costa leste. O Godfather concordou c om a proposta, mediante a redução de sua sentença e sua transferência para uma prisão menos rigorosa.

      A mensagem da Máfia aos sindicatos de trabalhadores portuários foi clara: não deveria haver mais sabotagens, incêndios ou greves nos portos, o que foi integralmente acatado. Luciano fizera a sua parte. Foi transferido para a prisão de Great Meadows, mais próxima à cidade de Nova Iorque e uma das mais tranquilas e de segurança mínima do sistema carcerário do estado, ainda em 1942.

Liberdade para Luciano

      Em fevereiro de 1946, Dewey, agora governador do Estado de Nova Iorque, comutou a sentença de Luciano, mediante a condição que concordasse com sua deportação para a Itália, o que aconteceu no dia 10 daquele mês.

      Entretanto, poucos meses depois, Luciano empreendeu uma viagem secreta para Havana, em Cuba, a fim de participar de uma reunião com os chefes das famílias mafiosas, em dezembro.

      Ciente da presença de Luciano em Cuba, onde participava da “conferência” do crime e, ostensivamente, aparecia ao lado do cantor Frank Sinatra em cassinos e boates de Havana, o governo dos EUA pressionou os cubanos, que o prenderam e o deportaram para a Itália, em fevereiro de 1947.

      Na Itália, foi mantido preso por poucos dias em Palermo, depois passou a viver em Nápoles, de onde controlava atividades ligadas ao tráfico de entorpecentes, na Europa e na América, sempre vigiado pela polícia.

      Ao comparecer ao aeroporto de Nápoles, em 26 de janeiro de 1962, para encontrar um produtor de cinema interessado em fazer um filme sobre sua vida, Charles “Lucky” Luciano sofreu um infarto, que o matou instantaneamente. Com a anuência das autoridades norte-americanas, seu corpo foi trasladado para Nova Iorque, onde foi sepultado, no Cemitério Saint John, no Queens, perante mais de 2.000 pessoas.

Outra ajuda importante

      A colaboração de Luciano com os militares americanos foi além de sua atuação junto à Máfia para impedir as sabotagens, infiltrações e prejuízos ao esforço de guerra dos EUA nos portos da costa leste.

      Uma nova necessidade surgiu quando da opção pela invasão da Sicília, após a campanha vitoriosa dos Aliados no norte da África. A Operation Husky encontrava-se prestes a ser desencadeada, e era preciso obter-se mais dados de Inteligência sobre o as praias, o terreno do interior da ilha, sua infraestrutura, os recursos locais, usos e costumes da população, situação política e econômica e, também, sobre o inimigo em presença na região.

Operação Husky – invasão da Sicília

      Procurado novamente, no começo da primavera de 1943, foi pedido a Luciano que coletasse informações junto aos seus conterrâneos. As informações que prestaram foram valiosas na montagem de um cenário detalhado da Sicília, com dados extremamente úteis para as tropas que progrediriam em seu terreno acidentado e difícil.

Um dos aspectos mais relevantes levantados recaiu sobre as lideranças da Máfia na ilha, e sobre sua disposição em colaborar com a causa Aliada, quando ocorresse a invasão.

A Máfia Siciliana

A Máfia Siciliana era uma força atuante na Sicília e controlava muitos aspectos da vida na ilha, das relações políticas ao comércio. Por seu intermédio, poderia ser garantido o desejado e precioso apoio da população.

Com a ascensão de Mussolini, o governo fascista passara a combater a Máfia Siciliana, que tinha no Duce seu grande inimigo. Mussolini empreendera uma campanha para erradicar o poder da máfia na Sicília. Em 1925, nomeou para o cargo de prefeito de Palermo, a cidade mais importante e populosa da ilha e o coração da Cosa Nostra, o ex-prefeito de Bolonha, Cesare Mori, conhecido como o “Prefeito de Ferro”. Cesare Mori procurou desacreditar a Máfia junto à população, fazendo-a crer que a organização criminosa não era sua única opção para obter proteção e para conseguir junto ao poder público as providências para resolver as questões administrativas que interferiam na vida do cidadão comum. Segundo Mori, a promiscuidade da Máfia com funcionários públicos e autoridades nutria a crença popular de que somente ela poderia ajudar na resolução de seus problemas junto ao Estado.

Mori e seus inquéritos e prisões de mafiosos em larga escala causaram um êxodo dos líderes da Máfia, provocando a partida de alguns para a América e a fuga de muitos outros para o interior montanhoso, na parte ocidental da ilha. A obstinação de Cesare Mori levou-o a executar mais de 11.000 prisões na região de Palermo, o que acabou resultando em desgastes, causando sua remoção do cargo por Mussolini, em junho de 1929, apesar de a propaganda fascista ter alardeado que a Máfia havia sido derrotada.

No entanto, a Sicília fora apenas aliviada do domínio da Máfia por alguns anos.

Em 10 de julho de 1943, quatro oficiais americanos da Inteligência Naval, liderados por Anthony Marsloe, juntos às primeiras tropas que desembarcaram na Sicília, estabeleceram contato com líderes mafiosos na ilha. A partir de então, a colaboração da Máfia provou ser de grande valor. Serviram como guias para as tropas e forneceram informações precisas sobre o dispositivo e instalações do inimigo. Em uma ação resultante de tais informações, o QG do Comando Naval Italiano na ilha foi atacado e documentos que revelaram o dispositivo das forças navais do Eixo e a as áreas minadas de portos no Mediterrâneo, bem como livros do código naval italiano, foram capturados.

Colaboração para o avanço de Patton

A colaboração de líderes mafiosos foi particularmente importante na progressão das forças de Patton no eixo Agrigento-Palermo, quando o 7° Exército investiu pelas “Colinas da Máfia”, avançando rapidamente para a conquista da capital da ilha, muito graças ao auxílio dos amigos de Luciano, como Don Calógero Vicina, que recebeu de militares americanos o símbolo pessoal do mafioso ítalo-americano, o lenço de seda amarelo.

Após a passagem das tropas de Patton, a Máfia Siciliana ajudou no estabelecimento dos governos militares aliados nas áreas conquistadas. Também foi fundamental na mobilização da população e na sua organização para a reativação de portos e outras instalações da infraestrutura local, bem como na retomada de serviços e outras atividades. Em contrapartida, as autoridades militares apontaram líderes locais da Máfia para a chefia do governo das pequenas cidades e para ocuparem outras funções de estado, em substituição aos fascistas.

Em curto prazo, a Máfia já sangrava os depósitos de suprimentos aliados na ilha, abastecendo o mercado negro e causando a perda de um terço dos itens estocados nessas instalações.

A Sicília estava de volta às mãos da Máfia.

Depois da conquista da ilha e durante a ocupação aliada, a tarefa de lidar com a Máfia passou ao Office of Strategic Services (OSS). A Máfia Siciliana ainda seria útil para impedir que os comunistas ocupassem os cargos nas administrações locais, o que atendia aos interesses norte-americanos, imediatamente ao final da guerra.

A colaboração a Máfia Siciliana com os militares norte-americanos contribuiu para que milhares de vidas de soldados aliados fossem poupadas.

A US Navy por muitos anos jamais admitiu qualquer arranjo feito com a Máfia ou com o então “Inimigo Público n°1” da América, Charles “Lucky” Luciano.

No entanto, nas palavras do ex-agente do Office of Naval Intelligence, Anthony Marsloe, “qualquer um que pudesse contribuir para nos ajudar era utilizado”.

Por Marcelo Pimentel

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